domingo, 29 de novembro de 2015

A borboleta





Tinha decidido que faria Faculdade de Biologia. Gostava do  mundo invisível e de ciências. Gostava em particular de observar as lagartas. Por isso, cuidava delas sempre que apareciam em seu jardim. Colocava-as num pequeno vidro, já todo apropriado para isso, e observava a lenta e mágica transformação. Antes um pequeno inseto rasteiro e até asqueroso para alguns, mas não para ela, porque sabia que era apenas um estágio temporário. O pequeno inseto ficava ali, passivo, apenas esperando o dia em que a grande mudança aconteceria. Parecia que tinha uma sabedoria interior, que ia guardando tudo o que via e ouvia. Ia acumulando toda a experiência que podia. Em um dia qualquer o casulo começava a aparecer , até que todo o corpo do inseto ficasse submerso em uma espera sem fim, dava a impressão que lá dentro não existia mais nenhuma vida. Por fora a cor era opaca, sem graça, o que reforçava mais ainda a idéia de ausência de vida. Até que sem ninguém esperar começava a aparecer uma pequenina cabeça e logo em seguida cores e mais cores submergiam daquele casulo sem importância. Aos poucos aquelas lindas cores se transformavam em asas. Asas para a liberdade. E ela ia embora , linda a bailar pelo ar. Não olhava para trás, e ia pousar na primeira flor que encontrava. Esse era seu ritual, observar a natureza no que ela  considerava de mais belo.
Um dia ao ver aquelas cores partirem sentiu vontade de segui-la, mas em  pouco tempo, por um minuto de distração a perdeu de vista. Sentiu-se então triste e melancólica, porque procurou e não a encontrou mais.
Voltou, pegou um outro vidro para começar tudo de novo, mas dessa vez sentiu medo. Medo de todo o processo.

Desistiu de fazer biologia.

A BONECA


  

Quando entrou no quarto e viu aquela boneca seus olhos brilharam. Ela tinha um rosto que lembrava uns pratos decorados, mas não era bem isso, tinha brilho nas maçãs do rosto. A boquinha parecia um coração bem vermelhinho e os olhos! Ah! Os olhos! Eram azuis como o céu, pareciam de verdade. Os cabelos eram dourados e cacheados e muito compridos. Ela poderia fazer lindas tranças por horas a fio, sem parar. O vestido era magnífico, cheio de rendas brancas de um pano bem fininho e todo bordado. Não, não era uma boneca! Era uma pequena fada. Ela jamais tinha visto algo igual. De repente ...
-          Ana, vamos. O que você está fazendo aqui neste quarto?
-          Ah! Mamãe só estava vendo aquela boneca, aquela fadinha.
-          Deixa disso menina. Desculpa Dna Quitéria. Essas crianças! Vamos, vamos. Você não devia ter entrado aqui.
-          Não tem problema – diz Dona Quitéria-  deixa a menina. Vamos pode pegar a boneca.
Os olhos de Ana brilhavam tanto, que parecia que havia luz dentro deles. Olhou para a mãe e viu reprovação em seus olhos. Então segurou a emoção e baixou os olhos. Obedeceu. Nesse instante, rolou uma pequena lágrima pelo seu rosto.  Retiraram-se do quarto mãe e filha.
Ao chegar em casa Ana foi direto para cama. Não quis jantar. Começou a sentir o corpo quente e o suor a descer pelo seu rosto. Começou a sonhar com sua amiguinha, muito loura e de olhos azuis. Elas corriam pelo campo e próximo a um riacho pararam para descansar. Jogavam pétalas de rosas na água e, de vez em quando, molhavam o pezinho na água muito fresca. Sem perceberem, a correnteza levou o sapatinho de sua amiga. Ana então correu para pegá-lo e sentiu que a água começou a inundar seu vestido e em seguida inundava todo seu corpo. A água aumentava e tão forte que o seu corpo começou a ser levado pela correnteza. Sua respiração ficou mais rápida... mais rápida. Então ouviu sua mãe chamando-a muito longe, depois sentiu uma mão lhe puxando o braço.
-          Ana! Ana! Volta!
Ana acordou. Estava toda ensopada de suor. Sua mãe estava ao seu lado com uma bacia de água e com um pano úmido, molhava sua testa e seus braços. Ana não entendia o que havia acontecido e perguntou a sua mãe onde estava sua amiguinha “A fadinha”. Sua mãe nem deu muita atenção, tal era a preocupação com a menina.
Passaram-se três dias e três noites e Ana continuava com muita febre e nada comia. Até que Dona Quitéria foi fazer uma visita e viu a menina ainda febril. Logo pensou na boneca. E disse:
-          Não será por causa da boneca Dona Amália?
-          Que isso! Dona Quitéria. Isso é bobagem. Imagina uma boneca! Acho que é da garganta.
-          Mas a senhora não me disse que nem o Doutor Santos, que eu pedi para ver a menina, sabe o que ela tem?
-          É verdade. Mas...  Veja lá Dona Quitéria não vá se incomodar por causa da menina. A boneca é da sua filha!
-          É.. mas ela já é moça e sua filha só tem 6 aninhos. A Sra não viu o brilho nos olhos da menina! Acho que ela queria pegar a boneca só um pouquinho.
-          Não Dona Quitéria, nós somos pobres e pobre não tem dessas coisas.
-          É Dona Amália, mas o encantamento não escolhe nem rico nem pobre. Espere um pouco.
Dona Quitéria retirou-se do quarto e, pouco tempo depois retornou trazendo a boneca e a entregou a pequena Ana. A menina abraçou a boneca com tanta força que nem percebeu que no pezinho da boneca faltava um sapatinho...
(Iracema Goor Xavier)




Poetas






CISMAM OS POETAS
QUE FLORES TÊM SABOR
QUE SAUDADE TÊM CHEIRO
QUE GRITA O SILÊNCIO

AH! NADA ACOMPANHA
O PENSAR DE UM POETA
QUE BEIJA A  BOCA DA NOITE
SALTA DA PONTE DO SONHO
E ATÉ AO RELENTO...
COM OS SENTIDOS ATENTOS...

RENDE-SE À VOZ
DO CORAÇÃO
QUE GALOPA
AO ENCONTRO DO VENTO


Iracema Goor Xavier

Memórias de uma carteirinha escolar


Nasci para ser importante. Primeiro me deram a cor azul (que eu adoro!), depois fiquei sabendo que ganharia uma roupinha linda, toda em plástico transparente. No princípio, eu não sabia por que iria precisar de uma roupinha, mas ouvi dizer que era para proteger, não rasgar, não molhar.  Mas o que vocês não sabem é que eu iria ganhar um nome de uma criança.  No início pensei que seria a única, mas me contaram que tinha uma porção de meninos e meninas e por isso precisariam de mais carteirinhas. Ufa! Eu não daria conta de tantas crianças e também era bom saber que ganharia outras amiguinhas.
Então chegou o grande dia, o dia em que ganharia um nome, mas não era um nome qualquer. Era o nome da minha criança. E eu carregaria também o nome da mamãe, do papai, da professora e de todas as pessoas que levariam minha criança para casa.
Fiquei muito empolgada, afinal se eu não estivesse presente a criança não poderia ir para casa. Então chegou o dia que eu seria entregue a minha família. A Diretora fez um discurso bonito para os pais e disse que eu era muito importante. E eu sei que sou!
Fui para a casa de minha nova família. Adorei! Fui tratada com muito respeito e carinho. Fui colocada em um lugar muito especial e a mamãe disse para a minha criança: “Olha não podemos esquecer a carteirinha, porque sem ela você não vem para casa”. Eu percebi como era importante e todos os dias de manhã e à tarde eu saía de casa e ia até a escola buscar a minha criança, no caminho encontrava outras amiguinhas. Um dia ouvi uma mãe dizer que tinha esquecido sua carteirinha, mas que não tinha problema. Fiquei sem entender.  Achei estranho, porque a minha mãe sempre me levava para a escola para buscar a minha criança. Um dia eu não fui, pensei que era final de semana ou feriado, mas não era, porque a minha criança tinha ido para a escola e eu não estava no meu lugar especial, estava jogada em cima da geladeira... fiquei preocupada, como minha criança voltaria para casa? Depois fiquei sabendo que deram uma tal de autorização e a minha criança veio para casa. Na outra semana eu cai no chão e me varreram para debaixo do sofá, não sei quanto tempo fiquei por lá, eu não podia respirar direito com aquela poeira toda, eu via apenas o pé das pessoas da minha família, tentava chamá-las, mas elas não me escutavam.  Fiquei tão triste que comecei a chorar, acho que fiquei até com depressão e quando a mamãe estava limpando a casa me achou, mesmo assim já não me sentia tão feliz.
Não sei, mas comecei a desconfiar que não era tão importante assim, porque a minha criança ia e voltava da escola e eu ficava esquecida e aquela tal de autorização sempre tomava o meu lugar. Comecei a achar que a minha família não gostava mais de mim, que não se importavam muito comigo. E que eu não era tão importante como a Diretora dizia.  Às vezes a minha criança me achava e me colocava dentro da sua mochila e eu ia para a escola e ficava feliz.
Um dia me esqueceram na janela e naquele dia começou a chover muito, minha roupinha de plástico não suportou tanta água e eu fiquei toda amarrotada. Comecei a sentir um vazio muito grande e tive vontade que o vento me derrubasse para dentro do bueiro e de lá eu não voltaria mais. Afinal, não gostavam mesmo de mim! Foi quando minha criança me viu, me salvou e disse: “Mamãe olha a carteirinha aqui! Tadinha, ela está toda molhada e com frio! Vamos cuidar dela, dar uma nova roupinha e eu quero que ela vá me buscar na escola de novo”.
            Nossa!  Senti tanta felicidade, afinal carrego comigo o nome da minha criança e não vou desistir dela. Eu sei que ela gosta de mim. Não sei quanto tempo vou viver, mas sei que enquanto viver vou cuidar bem da minha criança, como ela cuidou de mim. E sabem de uma coisa? A partir desse dia minha família não me esqueceu mais.
            Logo, logo nós vamos entrar de férias e eu também. Não vou mais para a escola, mas é só por um tempinho. Na volta às aulas eu tenho certeza que também vou voltar todos os dias para buscar a minha criança. E essa tal de autorização não vai mais me substituir.
            E a carteirinha sentiu, que o seu sonho seria realizado, totalmente, na volta às aulas.

Iracema Goor Xavier

     27/07/2011


Para Melissa



Era uma menininha linda de cabelos cacheados com apenas dois anos e meio de idade correndo por uma pequena pracinha. Em suas pequenas mãos carregava alguns pratinhos de aniversário para brincar de casinha, como dizia ela ao Seu Venceslau.
Colocou os pratinhos no banco da praça e percebeu que eles voavam como passarinhos. Não entendeu porque não paravam no banco de cimento e a toda hora caiam no chão. Observou as folhas caírem das árvores e começou a ouvir um barulho estranho, ao mesmo tempo arrumava seus cachinhos que teimavam em escorregar pelo seu pequeno rosto. Não teve dúvida, apontou seu  pequeno dedo em riste para o céu e disse: – Vento! Para agora!
Seu Venceslau riu e lhe disse que jamais iria parar o vento. Ela discordou e mais uma vez disse com mais ênfase: – Vento! Já disse pra você parar!  Tá desarrumando meu cabelo e levando meus pratinhos embora!  Seu Venceslau olhou para a pequenina e pensou que em seus longos dias de vida nunca tinha pensado em parar o vento.   Quem sabe aquela pequena menininha conseguiria, afinal é só uma questão de acreditar, e ela acreditava.
No momento seguinte, a pequenina  estava olhando para uma  formiguinha, mas o vento forte também a levou junto com a folhinha que carregava.  Seu Venceslau em seu pensamento lembrou de suas mágoas e dores e quase se perdeu no vento vago da solidão. Sentiu saudade do tempo em que o vento soprava sem o devorar e sem pedir licença para entrar. Voltou a olhar para a pequenina tentando encontrar um vento que não varresse de vez o seu ser. E o encanto aconteceu.
O olhar inocente da criança se encontrou com o olhar já bem vivido daquele velho. E deram um sorriso que alegrou todo o céu. O vento parou.  A beleza apareceu com seus tons dourados e naquele momento  não se sabia mais onde começava a criança e onde terminava o velho. Suas almas eram pura alegria. O vento parou,  porque reverenciou o encontro daquela que tinha uma vida inteira para aprender e iluminou com sua alegria aquele que tinha pouco tempo para viver.
Então o vento cantou:

Fui vento?
Não sei.
Não sei se fui vento, brisa ou tempestade.
Mas sei que soprei.

Não sei se soprei de forma branda ou forte.
Mas sei que entrei nesse lugar.
Não sei se entrei na mente, ou no coração.
Ou só envolvi por alguns instantes...

Mas sei que tentei ser vento bom.
Que leva as impurezas e que traz a chuva e o sol quente.
Agora serei vento em outro lugar,
E tentarei ser vento bom por todos os lugares em que soprar.

E a menininha se foi. Seu Venceslau ainda sorria por passar mais um dia de vida em que um pequeno ser tinha notado sua presença, de igual para igual.  Sentiu-se humano novamente e amou, amou profundamente aquela criança que dificilmente iria ver novamente. 

Iracema Goor Xavier


Intolerância






Cristo que não ama, que não tolera, que não perdoa?
Experiências espirituais vazias.
Deus foi morto (novamente)




Propriedade particular







“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu (...) A gente quer ter voz ativa e quer no destino mandar, mas eis que chega a roda viva e carrega este mundo pra lá (...)”.
(Trecho tirado da música Roda Viva do Chico Buarque)


O fogo foi chegando e aniquilando tudo o que estava a sua frente. As primeiras a serem queimadas vivas foram às pequenas e frágeis vegetações rasteiras. Elas não tinham para onde fugir e ninguém para salvá-las, pelo contrário, tinha o vento forte que parecia ter feito um pacto com o fogo, porque por todos os lados só víamos o fogo crescendo alto e com uma rapidez impressionante. O fogo encontrava uma árvore aqui ou acolá, mesmo assim como um matador implacável, primeiro atingia suas folhas e depois ia tomando conta de todo tronco, antes verde e cheio de vida, agora apenas uma sombra triste do que fora. O barulho era estridente, como se estivesse atingindo todos nós que presenciávamos aquela tragédia, impotentes diante de tantas chamas e de tanta fumaça. Alguns de nós até tentamos nos aproximar, para talvez jogar um pouco de água, mas o cenário era assustador. Por todos os lados as plantas agonizavam. Estávamos atônitos. Como tanta vida em um instante podia ter sido arrasada por uma avalanche dessa? Como aconteceu? De onde tinha partido tudo aquilo? Era apenas mais um sábado tranqüilo de sol e nos pegou completamente desatentos.
Um pintor veio correndo para saber o que acontecera, disse que seu trabalho tinha sido todo estragado pela fuligem. Um dia inteiro de trabalho para nada. Teria que lavar toda a parede e começar tudo de novo. Trabalho em dobro, tudo por culpa do fogo.
De repente olhei ao meu redor e vi uma multidão de desconhecidos, todos do mesmo bairro conversando e falando da calamidade. Culpavam o dono do terreno por negligência, que ele nunca aparecia por lá, que era um inconseqüente, porque o fogo poderia atingir as casas vizinhas.
Os bombeiros chegaram e sem conversar com ninguém se equiparam, pularam a cerca e começaram a fazer seu trabalho o mais rápido que podiam. Levavam consigo uma espécie de vassoura grande com cerdas de borracha e sem receio algum começaram a batalha contra o fogo.
Eu estava entre os que observavam tudo e pude ver as chamas destruindo uma palmeira que, imponente teimava em continuar ali em pé. No momento, tive à impressão que era uma pessoa amarrada a um poste, inocente, sendo queimada viva, porque não concordava com todo aquele horror. Calada, sem dar um grito de dor a palmeira foi sendo sucumbida pelo fogo. Digna, permaneceu em pé.
 Foi só nesse momento que me dei conta que havia uma placa enorme com o aviso “Proibido a entrada, propriedade particular”. A placa continuava ali como se pudesse conter alguma coisa. Depois fiquei pensando “Proibido a entrada”, pela gramática seria “Proibida a entrada”, mas isso não faz a menor diferença. Queria mesmo saber sobre o que era a proibição, de animais, pessoas estranhas, do sol, da chuva, do vento, da dor?  Existe um controle sobre isso?
 A primeira a invadir aquele espaço foi à vida com suas plantas de vários tipos e tamanhos. Mas o que assistimos naquele sábado foi à entrada covarde do fogo que sem pedir permissão, como um “serial killer” foi matando a queima roupa o que via pela frente. Dia triste, dia de trauma para todos nós que vimos àquela tragédia sem poder fazer nada para impedir.
Missão cumprida, os bombeiros foram embora, deixando só as cinzas. Ficou a saudade daquela vegetação tão linda e jovem que ainda tinha tanta vida e beleza para alegrar nossos olhos.



Iracema Goor Xavier